Não nasci Salgueirista.

“Salgueiros 1 Sporting da Covilhã 0” – O alerta no telemóvel interrompia a reunião de trabalho naquela segunda-feira de manhã. As notificações de resultados estavam, até há pouco tempo, reservadas aos clubes de meu coração: O Benfica, Amor primeiro, Amor maior, e o Atlético Mineiro, escolha da idade adulta, declaração de Amor à cidade onde casou, nas distantes Minas Gerais.
E subitamente ali estava, a espreitar o resultado do Salgueiros, enquanto a reunião continuava sem fim à vista.
Simpatizava com o Salgueiros desde criança. Benfiquista, nascido no Porto, cedo elegi a equipa de Paranhos como a minha preferida na cidade. mas não mais que isso. Foi, por isso, com profunda tristeza que assisti ao seu declínio e quase desaparecimento. E, com incredulidade soube da demolição do velho Vidal Pinheiro, cujas bancadas, infelizmente, não cheguei a conhecer.
Gostava do Salgueiros, mas sofria apenas pelo Benfica e, em escala menor, pelo Galo.
Nova notificação, “Salgueiros 1 – Sporting da Covilhã 1”. Já Sabia, ainda vamos perder isto. Imagino antigos companheiros de bancada, irmãos de sofrimento a blasfemarem contra a má sorte do Salgueiral, amaldiçoando a fé depositada de forma tão insana quanto incondicional na turma de Paranhos.
O tempo passa e o nervoso miudinho não pára de aumentar. Torço, suspiro por um golo que nos coloque novamente na frente do jogo. Não nasci Salgueirista, mas talvez me esteja a tornar um.
Há muito tempo que alimentava a ideia de iniciar um projecto fotográfico relacionado com futebol. Fui tentando articular ideias na minha cabeça, pensando em possíveis equipas. Interessava-me mais pelo que se passa em volta, nas bancadas, ruas e cafés, do que dentro do campo. E, nesse quesito, poucas histórias prometem mais do que a do Salgueiros. Tragédia, queda, mas sobretudo esperança e resiliência. Sim, a equipa ideal, o projecto perfeito estava ali mesmo, à mão de semear. Em Paranhos.
Intervalo. Já é bom, um empate com uma equipa da Segunda Liga. Mas, com alma chegamos lá. À Segunda Liga, certamente, e até ao Jamor, com um pouco de sorte!
Quando pela primeira vez fui ao Jardim da Arca d’Água, naquele fim de tarde de Agosto não era Salgueirista. Estava ali, para fotografar Salgueiristas, para retratar o ambiente em torno da turma de Paranhos. A multidão foi crescendo, famílias inteiras vestidas a rigor, e até um cão que desfilava orgulhosamente com um cachecol vermelho e branco. Sim, havia ali Alma, esperança e fé. Gradualmente, jogo após jogo, fui percebendo a dimensão da empreitada em que estava metido. Toda uma história de glória enchia aquelas bancadas, e todo o Amor por uma equipa, rufava naquele tambor. Jogo após jogo, dei por mim com um olho na bancada e outro no campo, sofrendo com cada insucesso, vibrando com cada golo marcado. Ganhei companheiros de bancada, admirei jogadores, tirei o chapéu aos que, dia após dia, mantêm o clube vivo.
Yannick! Golo do Yannick. Sim, O mesmo que, depois de cada jogo me pergunta se teve sorte, se por acaso tinha uma foto dele, uma foto que seja. Ah não fosse aquela reunião de trabalho e estaria lá, no Cerco onde ninguém passa. Estaria lá, objectiva apontada à camisola 80, naquele preciso momento em que a bola caprichosamente descreve um arco impossível, entrando no canto superior esquerdo do imóvel guarda-redes do Covilhã. Sim, era ali que devia estar, a sofrer e a implorar pelo fim do jogo.
Nova notificação. Jogo terminado. O Covilhã não passou no Cerco. Já se sabia que assim seria. Ninguém pode com a turma de Paranhos, ninguém pára a Alma Salgueirista.
Imagino a claque, os que nunca deixaram de apoiar, os que nunca deixaram de acreditar, imagino-os no topo do campo, junto à vedação cantando para a equipa, dizendo-lhes, por outras palavras, que nunca, nunca caminharão sozinhos. Era ali que devia estar.
Não nasci Salgueirista, mas morrerei um.

Ninguém passa no Cerco

Domingo de manhã, no Cerco. Impedidos de entrar no Complexo Desportivo de Campanhã, dezenas de adeptos juntam-se naquele baldio no topo do campo, com faixas, bandeiras e minis. Encostados à rede ou sentados nos muros, transformam aquele espaço sem serventia em ruidosa arquibancada, a mais concorrida e animada da cidade.

“Ninguém passa no Cerco”, dizem. E sabem, com razoável dose de certeza, que assim será, que nesta manhã de Domingo o Trofense cairá ali, aos pés do Salgueiros. Afinal passaram-se dias apenas sobre a bela manhã em que o Covilhã saiu do cerco curvado por uma inesperada eliminação da Taça de Portugal. 

E finalmente o golo do Salgueiros. Comemora-se efusivamente, antes do apito do árbitro soar, assinalando um eventual fora-de-jogo. “Sempre com a bandeira no ar, porra, baixa essa merda que isto não é um apeadeiro!”.

“Ninguém passa no Cerco”. A frase escrita algures dentro do Complexo, tornou-se lema da equipa, tornou-se hino dos adeptos. Daqueles que, aos domingos de manhã vêm de toda a cidade, de Paranhos, da Baixa, de Ramalde, até ali, ao Cerco, para ver a sua equipa. Longe dos olhos, perto do coração. Entre eles está Ernesto Golfinho. Vejo-o ali, enquanto o Salgueiros vai perdendo, escuto-o, lamentando-se da iminente derrota.

Conheci Ernesto Golfinho numa crónica de Dinis Machado. Nela, desiludido com um qualquer resultado da sua equipa, rasgava furiosamente o cartão de sócio, caindo depois em pranto, lamentando-se “Lá tenho amanhã de ir à Secretaria pedir outro Cartão. Passo a vida nisto.”

E de súbito ali estava ele, indignado simultaneamente com o árbitro, que já terá garantido o seu leitão, e com os jogadores, que deviam era jogar à bola. Ali estava ele, em cada um dos Salgueiristas que, naquele baldio, apoiavam a equipa com a absoluta certeza de que iriam perder, mas com a inabalável fé de que, no fim, tudo irá correr bem e o Salgueiros regressará ao lugar que merece.

Ali estava ele, em cada um dos que, decepcionados, rasgavam metaforicamente o seu cartão de Sócio, antes de, lavados em lágrimas, ansiar por ir no dia seguinte à Secretaria pedir outro, qual declaração de Amor ao clube do seu coração. Afinal, vive no peito da gente sempre a alma salgueirista.

Não há nada menos vazio do que um estádio vazio…

Já alguma vez entrou num estádio vazio? Experimente. Pare no meio-campo e oiça. Não há nada menos vazio do que um estádio vazio. Não há nada menos mudo do que as bancadas sem ninguém.

Eduardo Galeano, “Futebol ao sol e à sombra”

Um silêncio esmagador ecoava naquela tarde de Domingo. As bancadas vazias do Estádio de São Miguel pareciam despropositadas, ocupadas unicamente pelo tímido sol que parecia  anunciar o fim do Verão.

Gondomar e Salgueiros avançavam quase tristes para o centro do campo, qual cortejo fúnebre e solene. Subitamente o apito do árbitro ecoava no silêncio, dando sinal para o início do jogo, para o começo da época. 

Decorria morno, o jogo, quando do nada se escutou:

…tu já sabes, eu vou lá estar,

eu largo tudo para te ver,

força Salgueiros, vamos vencer…

Talvez fosse o vento trazendo palavras que tinham sido gritadas mais cedo, em Paranhos, aquando da saída do autocarro da equipa. Talvez viessem de mais longe, das bancadas do passado, de Campanhã ou mesmo do velhinho Vidal Pinheiro. Ou talvez estivessem a ser cantadas ali mesmo, no terreno vazio ao lado do Estádio, gritadas com Alma por um grupo de bravos Salgueiristas.

Foram curtas, as palavras, seja porque o vento tenha mudado de direcção, seja porque a Polícia tenha aconselhado o fim à aventura da claque. Curtas mas certeiras, pois minutos mais tarde, embalado pelo ritmo dos cânticos, animado pelo apoio incondicional dos seus, o Salgueiros marcava o primeiro golo do jogo.

A partida avançava, e com ela o silêncio voltou a marcar presença nas bancadas vazias. Até ao golo da equipa da casa.

No final, dentro do campo, prevaleceu o empate, no final, para a história oficial, dividiram-se os pontos. No Estádio, no entanto, ganhou o grupo de intrépidos Salgueiristas que lembrou aos jogadores que não caminham sozinhos. No final perdeu o silêncio do estádio vazio.

Eu quero…

Eu quero ser para ti o camisola dez
Ter o Salgueiros todo nos meus pés
Marcar um ponto na tua atenção…

Caía a noite no Palácio de Cristal, quando António Zambujo arrancava os primeiros acordes de “Zorro”. O vento soprava da Foz, lembrando os presentes que a noite Portuense é assim, arejada e fria, mesmo que seja ainda Julho. 

Caía a noite quando Zambujo atacou a segunda estrofe de “Zorro”, evocando o Salgueiros em vez do Benfica, marcando pontos na atenção dos presentes. Virtuoso, o cantor driblava assim a menção esperada ao Porto – o Futebol Clube – que arrancaria certamente aplausos vários da plateia. Mas não, não caiu em tentação e livrou-se do óbvio. Seguiu o caminho dos justos, e resgatou ao quase esquecimento o popular clube de Paranhos. Como se soubesse que, poucas horas mais tarde e não muito longe dali, o Salgueiros pisaria novamente o Vidal Pinheiro, dando por breves instantes vida aquele mítico estádio, levando sonhos que tão arredados andam daquelas paragens.

…se assim faltar a festa na tua bancada
Eu faço a minha útima jogada
E marco um golo com a minha mão.

Era já Agosto quando pela primeira vez pisei o velho Vidal Pinheiro. O que dele resta. Ali se jogou futebol, por ali passaram estrelas maiores do futebol Português. Ali viveu e ali se viu sem casa o Salgueiros.

Soavam ainda as palavras de Zambujo, na véspera, quando atravessei aquele campo e subi às bancadas tristes, tão falhas de festa, tão precisadas de futebol. E é dali, do cimo daqueles degraus de cimento, que se vê o pouco que resta do velho Estádio. Mas é dali precisamente dali que se percebe o tanto que sobrevive do velho Salgueiros. Sobrevive o sonho, sobrevive a certeza de que a festa voltará àquelas bancadas sós. Mesmo que seja na última jogada. Mesmo que seja com a mão.

Vitor

Vitor Andrade ajustava a bola na marca dos 11 metros. Era o último lance do jogo e o Salgueiros perdia por 2-1 na Póvoa de Varzim. Sobre a linha da baliza estava um jogador de campo, substituindo o guarda-redes expulso segundos antes. “Eu vou pegar”, ameaçava. “Olha p’ra mim que eu vou pegar”, gritava histérico. Vitor avança para a bola, o jogador do Varzim adivinha o lado e defende. Pegou. O árbitro apita, apontando para o fim do jogo. Enquanto os jogadores do Varzim corriam a festejar a vitória épica, os do Salgueiros abraçavam Vitor, cabisbaixo e ainda incrédulo com o desfecho da jogada. Vitor, posso apostar, queria desaparecer, fugir para o balneário, sair do Estádio, esfumar-se. E no entanto era por ele que as bancadas chamavam, era o seu nome que a claque cantava. Porque a angústia antes do penalty, ao contrário do título do livro, é do avançado e do avançado apenas. Ao guarda-redes está reservada uma oportunidade de glória, das maiores. Ao avançado restam duas opções: a obrigação ou o fracasso. Daí a angústia, daí os cânticos de ânimo. Vitor é um dos nossos. E os nossos não se abandonam.

22

Quando, em Agosto, propus ao Salgueiros a realização de um projecto fotográfico sobre a época da equipa sénior de futebol, estava longe de imaginar que agora, dois meses volvidos sobre essa conversa inicial em Paranhos, estaria ansioso pelo o próximo jogo do Salgueiros. Assisti, entretanto, aos sete jogos oficiais do Salgueiros, a mais dois de preparação, à apresentação da equipa na Arca d’Água e a um treino da equipa sénior. Conheci a Alma Salgueirista e o seu fiel tambor, aprendi o nome dos jogadores, do Capitão Moreira ao Vilaça, do Konan ao Isac, do Ibeh ao Vitor Andrade. Fiz companheiros de bancada, com quem partilhei alegrias e frustrações, vitórias e apreensões.

Hoje, à oitava jornada, o Salgueiros joga finalmente em casa, depois de cumprido o castigo de três jogos imposto pela AF do Porto. E, quis o destino, que o regresso a Campanhã, se fizesse com um jogo grande, primeiro contra o segundo classificado. As bancadas, adivinho, estarão cheias, cheias de Alma. Será um pouco de Vidal Pinheiro renascido, um vislumbre da glória de outrora, uma janela entreaberta para tempos futuros. O rufo do tambor, a bandeira ao vento de Beatriz, o entusiasmo de Deolinda. A Alma Salgueirista.

Neste dia, há 22 anos atrás, nascia Luísa, minha filha e companheira nessa paixão pelo futebol. Hoje o dia é dela, e dela apenas.Será por ela, pelo seu aniversário, que hoje não estarei em Campanhã. Perderei com isso instantes fotográficos irrepetíveis. Não deixarei, contudo, de torcer pelo Salgueiros, de acompanhar, à distância, o andamento do jogo, de vibrar a cada golo. Longe da vista, mas perto do coração. Ao teu lado desde sempre…

o futebol normal

Perguntava uma amiga no facebook se faltava muito tempo para o regresso do futebol normal. Referia-se à interrupção da Primeira Liga, por ocasião dos jogos da Selecção. Sim, esse é certamente o pensamento usual dos adeptos de futebol. Dos normais, diria. Essa ânsia pelo regresso do futebol profissional, o das transmissões televisivas e dos estádios novos e confortáveis. O futebol das estrelas, das multidões e do dinheiro. Do rios de dinheiro que o alimentam. Futebol-espetáculo, futebol de primeira.

Mas o futebol normal, esse nunca parou. O futebol que realmente importa, continuou a jogar-se na noite de 5 de Outubro, nesse poético Campo de Sonhos, com bancadas frias e irregulares. O futebol que povoa os sonhos de Beatriz, o jogo que a faz agitar com contagiante alegria essa bandeira vermelha e branca ao vento, esse continuou, apesar da Selecção.  

Não, o futebol normal não parou. Esse futebol que, imune à tempestade de Domingo à tarde, arrastou uma multidão de Paranhos até Grijó. Esse futebol que, apesar da chuva tocada a vento, arrancou Deolinda do sofá, que a levou a saltar a cada golo do Salgueiros, que a fez esperar junto ao relvado para abraçar cada um dos seus meninos, aqueles que correram e sofreram debaixo de um dilúvio bíblico. 

Sim, o futebol normal, nunca pára. O outro, o que enche televisões, que faz correr dinheiro e estrelas, esse recomeça em breve.

do balneário

A saída do estádio, naquela tarde de Domingo, fazia-se cabisbaixa. As bancadas esvaziavam-se com ritmo tristonho, o caminho até ao parque de estacionamento assemelhava-se perigosamente a uma via sacra. O jogo, esse até tinha começado bem, com o Salgueiros a dominar a acessível equipa do Nogueirense. O intervalo chegava com uma vantagem de três golos, que deveriam ser suficientes para sossegar a Alma. O pior, como sempre, viria depois, com a proverbial tendência para o sofrimento que só um clube grande conhece. O pior, como sempre, chegava com o já conhecido gosto pelo abismo, característica intrínseca do Salgueiros, como de todos os clubes históricos. O Nogueirense, que continuava tão insípido como antes, via-se agora a chegar aos 2-3. E com ânimo para mais.

O jogo, esse arrastou-se até ao fim, por entre roer-de-unhas, nervoso miudinho, descrença q.b. e a incómoda suspeita de que o caminho, estreito e íngreme, talvez seja empresa demasiado pesada para um Salgueiros que teima em renascer. E, nem a vitória arrancada a ferros, era bastante para animar os Salgueiristas que deixavam o estádio pensativos, perguntando-se se algum dia seriam recompensados pela esperança que teimam em alimentar. Talvez a vitória, escassa e sofrida, não fosse resposta suficiente. A resposta, essa insinuou-se disfarçada num rumor que saía pelas estreitas janelas do balneário, um cantarolar alegre onde era possível reconhecer o ritmo do cântico que mais cedo tinha ecoado na bancada.

Ao teu lado desde sempre…

As palavras, essas chegavam imperceptíveis, abafadas pela humidade do balneário, ritmadas pelo suor das camisolas rubras, pela alegria da vitória.

este é o meu lugar…

E de súbito voltaram sorrisos aos que passavam, e de súbito a via sacra transformou-se em ressurreição. Sim, se os miúdos acreditam, quem somos nós para duvidar? Se os miúdos que sofreram dentro de campo, que ouviram aplausos e assobios em doses iguais, que foram louvados e quase crucificados creem na justeza do sonho, quem somos nós para nos deixar abater? E do nada a certeza, a absoluta certeza de que sim, o caminho é estreito e íngreme. Mas de que se há em Portugal clube capaz de o trilhar, é o Salgueiros, se há em Portugal adeptos incapazes de desistir, são estes, cheios de Alma. Alma Salgueirista.

onde jogares estou presente,

só para te ver ganhar!